Dedico a meus irmãos, que também já foram crianças como eu e,
principalmente, comigo.
A infância
passou por mim feito um sopro de uma manhã ensolarada de maio. Meu primeiro ato
de bravura foi chorar quando, do útero de minha mãe, espécie de paraíso, fui “expulsa”
para que em outro paraíso na terra pudesse coexistir e, em teus brancos seios
me acalmar, sempre. Ainda era bebê e quem dera lembrar dos primeiros afetos e
das primeiras sensações de sentir-se amada e protegida, ai como eu queria!
Pouco tempo
passara e os primeiros sinais de independência e de autonomia já eram
percebidos. Os primeiros passos eram conquistados com alegria por todos. A
primeira palavra e a mais doce de todas, “mamãe”, fora então meu primeiro grito
de amor.
Minha infância
estava assim inaugurada, pronta para ser lembrança filosófica de alguém que já
existiu e que, em tão pouco tempo, já se foi.
Fui, como toda
criança, confiante! Menina, saia aí de cima! Dizia minha mãe desesperada, com
medo de que eu me machucasse. E eu, inocente e confiantemente, dizia: “Seu caí,
pain tigula”.
Chupei o
polegar direito até perto dos seis anos até formar um calo em sua articulação,
e tenho até hoje o que chamamos por “cheirosinho”, uma espécie de molambo usado
para ficar cheirando enquanto se chupava o dedo. Detalhe: quanto mais sujo,
melhor.
Fui também, em
um único momento, menina “arteira”. Aos 2 anos e poucos, fechei a porta do banheiro,
que ficava nos fundos da casa. Foi a primeira vez que desesperei minha mãe, mas
ela, como toda mãe, manteve a tranquilidade, mesmo morrendo de aflição
internamente, disse: “minha fia, fique na pontinha do pé e abra a porta”. E foi
justamente tais palavras que me iluminaram e me iluminam meus caminhos até
hoje. Pois, tenho convicção de que a magia e a força da palavra não é
propriamente o que ela quer dizer, mas como é dita, sempre. Minha mãe não sabia, mas hoje certamente ela
ficará sabendo que ela foi pioneira em minha experiência como aluna à distância,
está marcada como a minha primeira professora EAD.
Dando continuidade às peripécias infantis, aos
5 anos prendi meu dedinho anelar direito numa cadeira de madeira, daquelas que
abrem e fecham, e foi sangue, correria e desespero para todo lado. Fui direto
para o hospital ganhar meus primeiros “pontos”. E por falar em meus primeiros pontos, nessa
época também frequentei pela primeira vez a escola, este espaço que tanto
colaborou com a minha infância, firmou-se como importante retrato emocional e psicossocial
que consegui fotografar em meu subconsciente.
As bonecas não
foram muito minhas amigas de infância. Fui mais criança amiga quando estava
entre meus irmãos, entre meus vizinhos de cercas e de muros, entre meus amigos
de escola e entre as plantas frutíferas do quintal de minha antiga casa.
Fui mais criança quando andava de mãos dadas
com meus pais, quando íamos à missa e à praça aos domingos à noite;
Fui mais
criança quando ia à feira, aos sábados, com minha família e lá, chupávamos
geladinho e trazíamos para casa amendoins e dicuris.
Fui mais
criança quando, aos domingos e feriados pela manhã, íamos à praia de Jatobá ou
à lagoa dos Oiteiros.
Fui mais
criança quando, independente do dia, minha mãe abria uma jaca, fazia um pirão
de peixe ou meu pai descascava cana-de-açucar e ficávamos todos ali ao redor um
do outro, comendo, conversando e rindo, sendo feliz sem saber e, vez por outra,
quando amolecia um dente e pai dizia: “morão, morão: pegue esse dente podre e
me dás um são”. Depois era só jogar o dente no telhado da casa e aguardar, sem
ansiedade, um dente novo nascer.
Fu mais
criança, quando acordava ouvindo o canto do galo e das galinhas nos puleiros;
quando ouvia os pombos e os pardais na jaqueira despertando para mais um novo
dia e, ao despertar, corria para colher a goiaba “de vez” que havia visto no
topo do pé na tarde anterior.
Fui mais
criança criança, quando colhia manjelões
e via minha mãe tratar o peixe, dando as sobras das entranhas a gatos,
cachorros e patos que a cercavam.
Fui mais
criança quando era outono e ajudava a limpar o quintal repleto de folhagens,
com uma espécie de furador, catando folha por folha e colocando num bornal adaptado.
Fui mais
criança quando era inverno e via, surpresa, as outras crianças da rua cantando
e correndo no meio da rua “cai cai tanajura na panela da gordura...” pegando-as
sem nenhum temor para, mais tarde, assa-las na manteiga.
Fui mais
criança quando das queimas de cana-de-açucar imaginava as cinzas caindo do alto
como se fossem flocos de neve.
Fui mais
criança quando das noites de céu estrelado, vaga-lumes também iluminavam meus
caminhos de estrada de barro e de mato selvagem.
Fui mais
criança quando sentia medo do vento e da chuva, dos relâmpagos e dos trovões;
quando cantarolava baixinho: “Sol e chuva, casamento da viúva! chuva e sol,
casamento do espanhol”, ou “hoje é domingo, pé de cachimbo...”
Fui mais
criança quando ganhei minha primeira bicicleta, uma Monareta já usada e que
ainda tive que compartilhar com meu irmão mais novo;
Fui mais
criança quando saíamos todos os 7 de bicicleta ora pela pista, ora pela estrada
de barro de madrugada e víamos, no caminho, o sol nascer de novo.
Fui mais
criança quando tomávamos banho de chuva juntos; quando havia guerra de casca de
laranja ou testávamos a sorte com elas sendo jogadas nos caibros ou ripas da
casa. Se uma ficasse enganchada, podia contar com um instante de sorte e que
tal pedido feito, seria então realizado.
Fui mais
criança quando vi, todo ano, meu pai acender as fogueiras de São João e de São
Pedro e comprar fogos de artifícios.
Fui mais
criança quando celebrávamos o natal indo à missa do galo e adormecíamos no colo
de mãe antes da missa acabar.
Fui mais
criança quando meus avós paternos vinham nos visitar e traziam, além de
saudades supridas, rapaduras, fubas, soldas pretas, queijo de manteiga e pão
Recife.
Fui mais
criança quando meus irmãos e eu comíamos farinha com açúcar escondidos ou
quando chovia e tínhamos que ficar dentro de casa e, para passar o tempo,
brincávamos com o baralho (sueca, “cagado”, “par”, “burro inglês”) ou de
adedonha.
Fui mais
criança quando observava meus irmãos fabricarem suas próprias pipas com bambu e
grude, e seus próprios carrinhos de rolimã, conhecidos por patinetes, ou quando
brincávamos de bola, de vôlei e 7 pedrinhas no meio da rua com outras crianças.
Fui mais
criança quando, uma única vez, apertamos a campanhia de uma casa e saímos correndo
feito loucos, rindo de nossa própria sorte.
Fui mais
criança quando, na falta de energia elétrica, nossos pais contavam estórias de
terror e de assombração.
Fui mais
criança quando pai colocava música na radiola e meus irmãos e eu dançávamos horas,
sem parar e sem vergonha ou medo de nos sentirmos ridículos.
Fui mais
criança quando, em dias de semana, após um dia repleto de aventuras e de
imaginação, acabávamos adormecendo no sofá da sala, em frente à televisão.
Definitivamente
fui mais criança quando pai nos dava uns trocados ou permissão para comparar
doces a seu Manequinha, que passava com seu carrinho encantado pelas ruas, aos
domingos e feriados; a seu Celso e, principalmente, a dona Teca.
Hoje observo
meus sobrinhos, bem como outras crianças e fico a me perguntar se eles e elas
também foram ou estão sendo tão felizes ou mais crianças quanto eu fui.
À criança que
já fui um dia, deixo aqui essas memórias afetivas e faço um apelo: não se
esqueça disso, não me esqueça e não me deixe esquecer, jamais.
Maria
Marcela Freire, Mamafrei
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