Ler ou não ler: eis a questão
GLO-BO. Essa foi a minha primeira leitura do mundo estampada em uma tampa de uma panela. Havia acabado de pegá-la em minhas mãos a fim de enxugá-la e, de repente, como uma abrir e fechar de olhos, uma das descobertas mais fantástica do ser humano se instaurou naquele instante, naquele click em que meu cérebro conseguiu decodificar, pela primeira vez, o código da leitura e acendeu a luz do conhecimento por meio das letras.
O que fazer depois de tal descoberta, coube a mim e caberá a todo e qualquer leitor decidir continuar ou não decodificando não apenas o código da língua portuguesa, mas também de outras línguas, bem como e, essencialmente, o código de nossas literaturas, o código das mais diversas leituras que o mundo, de forma globalizada, pode nos oferecer por meio das palavras e de imagens.
Portanto, ler ou não ler não é apenas uma questão de empatia com as letras, com as palavras, imagens e situações que nos rodeiam. Diria, particularmente, que é também uma questão de vida ou de morte. De vida porque através da leitura, renovo-me enquanto ser diferenciado, reinstaurando e edificando minha humanidade e dignidade, ressignificando a minha vida e a de outrem; de morte porque não conhecendo a mim nem ao outro por meio da leitura, cairia no meu próprio esquecimento, seria acometida pela cegueira branca brilhantemente revelada por José Saramago em “Ensaios sobre a cegueira”. E, a fim de evitar tal tragédia em minha vida, resolvo compartilhar com você, caro leitor deste blog, o que fiz da minha vida após o descobrimento da minha primeira palavra lida.
Durante a minha infância, nunca tive acesso a livros, nem mesmo a revistas em quadrinhos. No entanto, inconscientemente, sabia o poder da magia das palavras. Ouvia meus irmãos mais velhos lerem e relerem, enquanto faziam as tarefas de casa, o poema de Cecília Meireles “A chácara do Chico Bolacha”. Na época, antiga 3ª série, o que me marcou foi a história do “Sonho de Pisca-Pisca” – D ´Olim Marote, além do poema “O Menino Azul” – Cecília Meireles. Esses primeiros textos que tive acesso estavam contidos em livros didáticos. Por isso destaco a importância da escolha e do uso destes nas escolas, uma vez que o livro didático é, na maioria das vezes, o único livro/suporte textual que a maior parte dos estudantes têm acesso, pelo menos no início de sua vida estudantil. De modo que o livro, sendo um bem cultural, sempre foi e ainda é um “objeto de luxo”, usado por poucos, dado o seu alto valor aquisitivo.
Sempre fui de origem humilde. Meus pais foram agricultores e depois que saíram do campo e foram morar na cidade, passaram a construir uma família baseada em valores religiosos e sociais. Na época em que comecei meus estudos, meus pais eram semianalfabetos. Entretanto, há uma curiosidade quanto a este aspecto. Meu pai, apesar de quase não ler, passou a comprar livros àqueles “vendedores de porta”: era dicionário, enciclopédias, livros científicos e literatura brasileira e internacional. Minha irmã mais velha se esbaldava no mundo da leitura com tais clássicos. Eu ainda era uma leitora em potencial e continuei sendo-a até entrar na faculdade.
Na época da adolescência, dou destaque a algumas obras que, anos mais tarde teriam maior significado para mim se as relesse: “O Seminarista’, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “O vermelho e o negro”, “O Guarani”, “O Quinze”...
Na faculdade, o mundo da leitura, por fim, tornou-se amplo e ilimitado. Conheci os cânones, os clássicos e até mesmo a literatura de massa, bem como textos do Padre Fábio de Melo.
Depois da faculdade passei a ter autonomia quanto às minhas leituras. Tive a curiosidade de ler alguns textos bíblicos e fui seduzida pelo “Cântico dos Cânticos”, bem como pelos textos erótico-poéticos de mulheres potiguares, como: Marize Castro, Diva Cunha, Ana de Santana e Maria Maria Gomes.
O feminismo de Simone de Beauvoir e de Frida Kahlo me encantou. A potência reveladora da falta de humanidade dos homens retratada nos textos de Maria Carolina de Jesus e de Stela do Patrocínio deixou-me sem ar. Mas, antes disso, fui fisgada por Saint-Exupéry em seu livro: “O Pequeno Príncipe” e por “Uma professora muito maluquinha” de Ziraldo. Esses dois últimos ocupam um lugar especial em minhas memórias de leitura, pois são os que mais releio e faço releituras deles em meu dia a dia como Ser humano e como Ser Professora, não exatamente nesta ordem nem mesmo cogitando a possibilidade de haver uma desvinculação entre Ser humano e Ser Professora.
Sei que decepcionei o público leitor desta página ao não mencionar Dostoievski, Kafka, Dante ou Homero, entre outros. Não os li, mas conheci suas contribuições para o mundo a partir de outras leituras também tão significantes quanto. Caro leitor, se confissões lhe alegram, confesso que bebi da fonte de outros grandes: Fernando Pessoa, Shakespeare, Ovídio, Nietszche, Walt Whithman, , Khalil Gilbran, André Gide...e, nesse meio tempo ainda me encantei com Pablo Neruda, Octávio Paz, Eduardo Galeano, Florbela Espanca, Mia Couto, Conceição Evaristo, Adélia Prado, Odete Semedo, etc. Por fim, ainda há muitos desejos em realizar diversas leituras, como: “Cem anos de solidão” e “ O amor em tempos de guerra”, de Gabriel Garcia Marquez.
Entretanto, de nada valeriam tais leituras se antes, não tivesse tido o prazer de ser apresentada, pelos meus grandes mestres da faculdade, aos cânones nacionais: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Manoel de Barros, Clarice Lispector, bem como aos “cantores” da minha terra potiguar: José Bezerra Gomes, Luís Carlos Guimarães, Zila Mamede, Câmara Cascudo, Diógenes da Cunha Lima, Iara Maria Carvalho, Antônio Francisco , entre tantos outros já mencionados e que não foram por motivo de dispersão.
Entre autores e obras, muitas reticências e muitas aprendizagens. Tornei-me além de leitora - de consumidora de tal bem cultural -, pesquisadora de alguns temas, poetisa, declamadora de versos e professora. Por onde passo, meus alunos conhecem essa minha paixão pelas palavras e sabem que ler ou não ler também pode ser uma questão política mas, antes de tudo, é uma questão de sobrevivência.
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